
Terreyro Coreográfico, a potência dos baixios dos viadutos
Por Juliana Pithon
Em meados de 1800, Libertas, uma ex-escrava enterrou uma cabeça de bode no meio do bairro Bixiga com a intenção de marcar território e expandir paz e prosperidade. Até hoje se ouve essa história de porta em porta nas ruas de lá, mas a sagração dessas terras é conhecida não só por isso, como também pela presença dos negros quilombolas, imigrantes, italianos e africanos, migrantes nordestinos, artistas de teatro, do samba, artesãos e comerciantes.
Como um corte no tecido urbano da antiga Chácara do Bixiga e um elo entre vias extremas de São Paulo, foi construído anos mais tarde, o Viaduto Julio de Mesquita Filho. Essa ligação Leste-Oeste trouxe para o bairro, uma série de consequências por meio da especulação imobiliária, da desvalorização de um território popular, da criminalidade, do abandono e da falta de infraestrutura.
Em busca da re-existência das relações entre as comunidades e das características do Bixiga, as arquitetas cênicas do Teatro Oficina, Marília Gallmeister e Carila Matzenbacher fizeram um projeto visando à restituição do bairro através de organizações-base para coletivos culturais dando outra direção para os espaços públicos.
O primeiro território a passar por essa transformação foi o Baixio do Meio, ou melhor, Baixio Libertas, localizado embaixo do viaduto, entre o Sacolão em frente ao Teatro Oficina e o Baixio da ponta. Fugindo do senso comum de ocupação dos espaços públicos, em conjunto com artistas e ativistas, as arquitetas desenvolveram uma explosão sobre os limites físicos do espaço a começar pelo pixo, por exemplo, um fenômeno cultural de desconstrução gráfica e urbanística através dos muros.
Em agosto de 2015, o Baixio passou a ser palco de áreas culturais, áreas verdes, áreas de lazer, convivência, permanência e ócio. Foi criado um lugar que conversa com a população através de práticas artísticas, cinema ao ar livre, feiras de troca, palcos de encontros, debates públicos, yoga e rodas de música e dança.
“Chamamos o projeto de Terreyro Coreográfico que significa encruzilhada em uma confluência de áreas. Primeiro pensamos na transmutação do “terreno” em “terreiro” e o Y no lugar do I representando essa encruzilhada, uma possibilidade de várias vias. Depois de estarmos lá diariamente em experiência com dançarinos, músicos, filósofos, atores, urbanistas e arquitetos, enxergamos a coreografia do espaço e sua multidisciplinaridade”, conta Marília, arquiteta do projeto.
A dimensão e força do espaço foram desvendados a partir da ideia que se construiu entre público e privado. O público ultrapassa o geográfico e o que está sob tutela do Estado. Ele é a instauração de uma relação e suas trocas de convivência. Marília acrescenta, “Para que isso ficasse claro, nós quebramos essa barreira colocando os dois juntos até provocar a coexistência de públicos e o aprimoramento do auto sustento de culturas em que uma se alimenta da outra. Toda segunda a noite, por exemplo, tem uma cantoria africana, mas antes acontece a capoeira dos moradores do bairro e eles sempre acabam ficando pra cantoria”.
A arquiteta da Universidade Antropófaga, Clarissa Morgenroth também está no projeto e afirmou, “O Terreyro é como um canteiro de obras permanente. Tanto pela experiência da construção dos nossos dispositivos quanto pelo sentido de se pensar em restabelecer o que era público pela ordem de resgatar as relações com o contexto. Foi preciso um esforço corporal e intelectual para aprendermos a lidar com um espaço sem limitações”.
“Além disso, debaixo de todo esse chão de concreto daqui do Terreyro, passa o Rio Saracura que desemboca na Vila Itororó, e a nossa ideia de fazer uma horta comunitária é justamente para reconectar a cidade à natureza desse percurso do córrego de alguma forma mesmo que não seja a partir da conexão concreta com as nascentes”, acrescenta Clarissa.
Esse projeto culminou em muitas conexões importantes para um bairro considerado “periferia do centro” como o Bixiga. A vivência dos fluxos locais implicaram no início do processo de requalificação e remodelação urbana e social através das propostas sócio-culturais-educacionais compreendendo a integração das áreas e da sociedade.
O Baixio Libertas contempla um diálogo intenso com aspectos de vitalidade, qualidade, segurança, bem estar social e cultura. A instauração de valor ao que é público está ligada às formas de entender o vazio como vazio-potência.